terça-feira, julho 18, 2006

Rosas Cor-de-Ontem



1.

Ela gostava de filmes de papel e carvão. Preferia os diálogos aos efeitos especiais, a trilha sonora às explosões, o preto e branco ao multicolor.Vivia assim meio que sabe-se-lá como, um tanto perdida em uma época que não era a sua. Quem passava e a via, tinha a impressão de estar com as vistas embaçadas, como que recém-acordando de um pesadelo. Quem passava e a via, por vezes, dava de ombros e ignorava os belos olhos negros e o sorriso nostálgico (era daquelas que sentiam saudades ainda mesmo do que estaria por vir, que olhava para trás e sentia-se a observar o vazio). Mas todos ignoravam o seu perfume de rosas. Todos exceto um.

Ele gostava de filmes de plástico. Preferia o ensurdecedor vazio ao falatório difícil, a fumaça aos noturnos de piano, o arco-íris ao perder da cor. Vivia assim feito letreiro néon, piscava na multidão, fugaz. Quem passava nunca o via, mesmo que ele escandisse as ruas como poema pós-moderno. Quem passava e, por ventura, o via, não ignorava o cabelo despenteado e a pele branca (era daqueles que detestavam o mar a praia os coqueiros, preferindo os arranha-céus e as sinaleiras). Efêmero como uma bailarina de areia ao vento, não sentia perfume algum. Exceto o dela, aroma de rosas.


2.
Ele catou-a pelo braço (suspirou ao não sentir espinhos cravando seus dedos) e perguntou mil coisas, das quais ela apenas entendeu aquilo que se referia a filmes preto e branco. Ela passou o braço pelos seus ombros e despejou daquele sorriso de ontem nos olhos dele (era daquelas que entendia o sorriso como chave para todas as portas, especialmente as antigas). Ela falava em tons de cinza e ele respondia sorteando cores. Ela dizia preto-preto-branco, ele, envergonhado, pincelava amarelo-vermelho-azul-lilás. Riram cor de entardecer e foram até o apartamento dele (era daqueles apartamentos-veludo, aconchegante. Faltava uma rosa no vaso ao lado da televisão).

Ele disse para ela, à meia luz e meia, que azul-roxo-anil-ela-parecia-um-anjo-caído. Ela, fechando os olhos e umedecendo as pétalas, respondeu branco-branco. Anoiteceram abraçados. Ela sonhou com maçãs vermelhas (era daquelas que raramente sonhavam em cores) e ele com a crucificação de um desconhecido (era daqueles que raramente sonhavam). Amanheceram estranhos um ao outro. Ela beijava-lhe a face e pingava orvalho em sua boca; ele a bebia entristecido, sabia que nunca preto-branco haveria de se encontrar em azul-lilás-vermelho-amarelo.

3.
Ela murchou desamparo-querer-ficar. Sentia aquele vento frio do outono enquanto ele falava coisas assim das quais ela não entendia nada. Ela tentava beijar-lhe, mas as pétalas gosto de sal atrapalhavam, metiam-se entre as bocas. Ele buscava-a nos olhos, tentava explicar que o outono sempre vem, mesmo que assim, quando não se quer. Ela insistia que branco-branco; ele, juntando as pétalas, respondia amarelo-verde-roxo.

Ela ainda precisava de tempo (era daquelas que chorava até secar). Ele vestiu-se de vez e abraçou-a nunca-mais. Ela deitou-se de bruços, a cabeça enterrada no travesseiro soluçando preto-preto (brotavam espinhos em seus lábios); foi então que ele viu, nas costas nuas dela, as cicatrizes do que pareciam ser asas de anjo arrancadas à força. Deixou a porta aberta ao sair.

Luciano Mattuella................

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